Justo você, Berenice!









Acorda, Zelão! Diacho de homem preguiçoso! Ele se levanta, afunda as mãos no tambor d’água, lava o rosto, a nuca, os cabelos. Sente-se cansado, seu corpo respondendo a mais uma noite mal dormida, regada a cachaça, forró e carícias de uma rapariga recém-chegada de outra cidade, nova moradora da casa de D. Zû. O dia está claro, sol a pino. Como de costume, Berenice já está se aprontando para sair, separando as ferramentas, cordas, explosivos, uma garrafa de café e alguns chimangos.
Saíram do barraco improvisado, moradia em tempos de garimpo, e caminharam em silêncio entre mandacarus, bodes e plantações de cisal. Faz muito calor hoje, hein?! Berenice fala. Noite passada sonhei com muito ouro, tanto que nem cabia na mão. Acho que teremos sorte! Berenice ainda se esforça para começar uma conversa, mas Zelão permanece calado, submerso em seus pensamentos.
Sorte?! Pensa Zelão. Lembra-se da noite anterior na casa de Zû quando ouviu mais uma vez comentários maliciosos sobre Berenice. Mulher viúva pela segunda vez, mãe de 3 filhos largados no mundo. O primeiro marido Deus levou, o segundo o Diabo carregou, brincava um dos garimpeiros. O que teve de azar com homem tem de má sorte para achar uma pepita. Em tantos anos de cava, só achou farelo miúdo que mal se vê, comentou outro rindo. Zelão conhecia a fama de má sorte de Berenice, mesmo antes de aceitá-la como sua nova parceira de cava, mas continuava com ela, pois precisava de uma pessoa em quem confiasse.
Durante todo esse tempo ambos mantiveram-se fiéis ao acordo firmado. Zelão deu uma chance à ela na sua cava, a abrigou em seu barraco e até ajudava no sustento dos seus filhos interando a feira com trocados que conseguia fazendo bico de pedreiro na cidade. Por sua vez, Berenice ajudava na arrumação do barraco, dos equipamentos e no preparo do café, tudo com muita dedicação, prova de companheirismo e lealdade. Pareceu um bom acordo para os dois. Até aquela manhã!
A caminho da cava para mais um dia de garimpo, Zelão resolveu que não continuaria mais com Berenice. Mas que diacho, homem! Desde que ela chegou tá pra completar meses sem achar um farelo de ouro sequer. Pensava Zelão. Então se decidiu. Hoje seria o último dia de cava com Berenice, dali em diante vai ser cada um por si, afinal de contas não era seu marido, menos ainda pai de seus filhos para carregar esse fardo. Qual era sua responsabilidade sobre ela e suas proles. Nenhuma.
Sonhei com muito ouro, acho que hoje teremos sorte... As palavras de Berenice ficavam na cabeça de Zelão enquanto caminhava. Maldita confiança, mulher desgraçada, que fala de presságios e sonhos com ouro, como se não soubesse de sua má sorte e mais uma vez sairemos da cava da mesma forma como entramos, com as mãos e a barriga vazias. Mas aproveite ainda por hoje, de noite vou te colocar pra andar antes que esse azar pegue em mim também e acabe ficando mal falado na vila toda.
Chegaram a cava. Berenice se prepara para entrar no buraco, amarrando-se à corda para que Zelão possa arriá-la a 80 metros de profundidade. Quando ela chega ao fundo da cava, começa seu trabalho. Zelão ficará ainda por muitas horas lá em cima esperando um sinal de Berenice do ouro que, com certeza, não encontraria. Enquanto espera, ele começa a pensar em como fará para mandá-la embora à noite. E se ela chorar, pedir mais uma chance em nome de seus filhos. Por Deus! Não mereço passar por isso, nem me deitar com ela me deito. Tudo seria mais fácil se ela simplesmente sumisse... sumisse?! Era isso. Berenice não tinha ninguém, seus filhos moravam de favor na casa de estranhos enquanto ela passava semanas sem dar notícia alguma. Quem perceberia sua falta? Quem choraria sua ausência? Ninguém.
Decide então cortar a corda, deixá-la lá embaixo até passar dessa pra melhor. Não adiantaria gritar, pois estavam longe de tudo e de todos. Pegou a faca que sempre trazia amarrada na cintura, segurou firme a corda que sustentava Berenice e se preparou para cortá-la. Ficou durante alguns minutos tomando coragem para dar fim a essa mulher já muito desgraçada pela vida. Estaria fazendo um favor a ela, não é mesmo? Pobre mulher! Merece ter fim seu sofrimento. O corpo de Zelão tremia e suava numa mistura de calor e nervosismo, culpa, ansiedade, redenção...
Achei, Zelão! Ouve Berenice gritar. O grito vem seguido de risadas nervosas e muita euforia. É uma pepita, e das grandes! Não te disse que hoje seria nosso dia de sorte! Quando ele a puxa de volta, ela sai de mãos vazias. Mas cadê o ouro, mulher! Pergunta. Não consigo tirar, é muito grande. Você vai ter que descer na cava para pegar. Rapidamente Zelão se amarra às cordas, cego em sua ambição. Estava pronto para descer, anda mulher, começa logo a dar mais corda. Quando chega ao fundo da cava, acende a pequena lanterna e começa a vasculhar em volta à procura da pepita. Procura, procura e nada além de pedaços de pedra e poeira. Nesse momento sentiu a corda cair ao seu lado. Mas que diacho! Berenice!... BERENICE! Nenhuma resposta lá de cima. Seria essa sua morte? Sim.
Com a faca em punho, Berenice tira de seu bolso uma grande pepita de ouro. Olha fascinada por sua cor, textura, brilho. Maldito Zelão! Durante todo esse tempo de cava juntos, nem um grama de ouro sequer. Homem azarado! Coloca o ouro novamente no bolso e sai caminhando rumo à casa de D. Zû onde passaria as próximas semanas comemorando seu achado, pagando cachaça para todos e logo encontraria outro companheiro de garimpo. Só que dessa vez, seria um homem com mais sorte que aquele desinfeliz do Zelão. Que Deus o tenha!
Vaqueiros Cecílio e Bequinha - Santaluz/BA
projeto: O Sociólogo Aprendiz












Abro esse espaço para compartilhar experiências e histórias que ficaram marcadas em minha memória e começam a querer sair em formas, imagens e textos. Pelas minhas andanças Brasil afora, oportunidade que tive realizando projetos socioambientais de norte a sul dessa imensidão terrritorial, conheci lugares, pessoas, "causos" que me estimularam a iniciar um projeto pessoal, e talvez um pouco ambicioso, intitulado O Sociólogo Aprendiz. Nesse projeto partirei de meus registros de viagens, tudo aquilo que fui colocando na bagagem por onde passei, como fotos, conversas e vivências para apresentar histórias que misturam realidade e ficção, possiblidades e impossibilidades.

Sim. Quem já leu o livro de Mário de Andrade perceberá que qualquer semelhança à sua obra não é mera coincidência. Quando li O Turista Aprendiz, resultado do projeto Missão de Pesquisa Folclórica (1938), fiquei maravilhado com os registros de viagens feitos pelo autor / musicólogo / jornalista em sua busca por uma cultura popular brasileira tão rica e latente em suas expressões populares. Nesse momento me senti muito próximo de Mário de Andrade e percebi que tinha em minhas mãos a oportunidade de desbravar a pluralidade cultural brasileira através de minhas viagens e, assim, passei a colocar em minha mala tudo o que aprendia em cada encontro com a comunidade, conversas e cafezinhos Brasil afora. 

O projeto O Sociólogo Aprendiz que até agora encontrava-se no plano das idéias, aquelas vontades que nos tiram o sono à noite, começa a se tornar realidade. Se me perguntarem aonde pretendo chegar com ele, responderei com sinceridade, não sei. Estou mais disposto a trilhar o caminho do que certo de como fazê-lo, ou ainda, aonde chegarei. Mas sinto a vontade, e até necessidade, de compartilhar todos os meus registros e relatos de viagens, pois não quero que tais experiências e descobertas sejam deixadas de lado, encostadas, em minha memória, tal como um livro esquecido na prateleira.